[#4] Aquele em que o Carnaval rendeu
Entre bloquinhos e desfiles, a minha identidade em jogo no país do futebol
Opa, e aí? Bem-vindo a mais uma edição do Trans do Fim do Mundo, onde eu sobrevivo fazendo comédia e falando de coisa séria de vez em quando.
Da edição passada pra cá, descobriram um fóssil de um esquilo voador gigante (do tamanho de um gato) lá nos Estados Unidos. Como se não bastassem todas as maluquices, nos EUA ainda tem a possibilidade de um mamífero pré-histórico planar até a sua casa. Boa sorte pra nós, camaradas!
O tema de hoje era para ser um completamente diferente desse, mas a Gi Santana, uma amiga queridíssima que eu tenho, me recomendou o desfile potente da Paraíso do Tuiuti nesse último carnaval. A edição é longa, então prepara a pipoca!

Sabe, eu nunca fui muito de Carnaval. Nem uma pessoa de bloquinho, daquelas que gostam de rebolar até desmaiar, ou alguém que por livre e espontânea vontade assiste aos desfiles na Marquês de Sapucaí pela televisão. Eu sou aquela que muita gente vai achar uma pessoa careta, mas felizmente uma careta consciente: que sabe que o Carnaval é uma expressão cultural potente, e os desfiles são uma ótima oportunidade para fazer piada, e veja você, igual essa newsletter, também falar de coisa séria.
O desfile da Rosa de Ouro, a escola vencedora em São Paulo, por exemplo, foi uma coisa de maluco. A comissão de frente, a forma com que a gente chama a primeira ala a se apresentar da escola de samba, era um tigrinho manual gigante, com manivela pra acertar as três figurinhas iguais e tudo. Eles também desfilaram com personagens da Nintendo, tipo o Mario e o Luigi, mas também tinha o Sonic de penetra numa participaçãozinha discreta da Sega (a Nintendo deve estar muito feliz com a bolada que vai ganhar processando a Rosas - falo isso com dor no coração - VOCÊ ME PAGA, NINTENDO!).

A segunda colocada do ano em São Paulo, a Acadêmicos da Tatuapé, optou por um approach mais político da coisa toda, e escolheu um tema que cairia bem pra essa newsletter: a Justiça. Um dos carros alegóricos apostou na imagem da estátua da justiça lá do STF segurando uma criança morta com as mãos, mostrando que, afinal, um país que mata as suas crianças é um país injusto. Mais do que isso, aqui um trechinho do samba-enredo:
"Chega de ódio, de tanta violência/ Bata seu tambor/ Respeita a minha fé/ Reza pra quem é de aleluia ou pra quem é do axé/ Tatuapé…/ “ Poder” do povo preto está presente em nós/ Marginalizados, excluídos/ Que a Justiça seja sempre a nossa voz/"
Essa letra bonita exalta as religiões africanas e o povo preto, mais atingido pelas inúmeras injustiças desse país, e de quebra traz consigo uma mensagem de união. Desfiles de Carnaval não são mesmo algo pra passar batido pela gente, não é? Eu devia ter prestado atenção neles antes. Mas calma, você veio aqui pra me ouvir falar da Tuiuti. Mas antes, pra gente não perder o costume, vamos discutir um pouco o contexto desse desfile.
A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) divulgou esses tempos que o Brasil matou 122 pessoas transgênero em 2024. Isso nos coloca, entre os países que colhem esse dado, como o primeiro da lista, ou, como você já deve ter cansado de ler por aí , “o país que mais mata pessoas trans no mundo”. É imprescindível dizer por aqui também a demografia dessas mortes: 78% das vítimas eram negras, e 66% tinham menos de 35 anos.
Além desse dado alarmante, quero citar aqui dois resultados de eleição reveladores. O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) fez sua campanha em 2022 ancorado no ódio contra travestis e transsexuais, e isso fez dele o deputado mais votado da história do país, com quase 1,5 milhão de votos. O Lucas Pavanato (PL-SP) foi o vereador mais votado da cidade de SP em 2024, com um panfletinho meia-boca atacando mulheres trans dizendo que não poderíamos usar banheiros femininos ou competir com outras meninas no esporte (e ele sabe bem que vereador não tem poder pra nada disso, mas foda-se, rendeu voto, né?).

E tem mais: em dezembro do ano passado, 342 projetos anti-LGBT tramitavam em câmaras municipais e assembleias legislativas brasileiras por aí, segundo a Observatória, plataforma da Agência Diadorim. Parece muito? É porque é. E, é claro, os temas não podiam ser outros que não a proibição da linguagem neutra, exigência do fim de programas que acolhem a comunidade LGBTQIA+ e a proibição do uso de banheiros por pessoas trans. E tudo isso contra uma tal “ideologia de gênero” que nem existe. É revoltante.
Voltando pra Tuiuti (ufa, eu tava quase chorando escrevendo esses dados todos), o desfile foi sobre a primeira travesti documentada no Brasil, a Xica Manicongo, vendida como escrava e condenada à fogueira no século XVI. A escola teve a coragem de abordar esse assunto, em meio aos vários ataques que nós sofremos por aqui (lendo os três últimos parágrafos dá pra ter uma ideia do desastre), mas não sem mostrar que também existimos e resistimos.
Vinte e oito mulheres trans participaram do desfile, dançando fantasiadas e se divertindo, como deve ser. A nossa diversão - o nosso samba - é resistência pura. Entre as mulheres, a Erika Hilton (PSOL-SP) estava por lá, e eu desataco a presença da Neon Cunha, travesti que sobreviveu à Operação Tarântula, da época da ditadura militar.
Para finalizar, vai aqui um trecho do enredo da Tuiuti, que esse ano ficou em décimo lugar, mas venceu na ousadia de apresentar a primeira travesti do Brasil no meio da Sapucaí, pra todo mundo ver. Voa, Tuiuti!
''Eu conheço o meu desejo/ Este dedo que acusa/ Não vai me fazer parar/ Faz tempo que eu digo não/ Ao velho discurso cristão/ Sou Manicongo/ Há duas cabeças em um coração/ São tantas e uma só/ Eu sou a transição/ Carrego dois mundos no ombro/''
Recomendações da Semana!
Veneno (2020; Javier Ambrossi, Javier Calvo) é uma série baseada na vida e morte da cantora trans espanhola Cristina Ortiz Rodríguez, mais conhecida por lá como La Veneno, e acompanha em paralelo uma jornalista que quer escrever sua biografia. Eu chorei igual criança.
Alice Júnior (2020; Gil Baroni) é um clássico coming of age só que protagonizado por uma mulher trans, e no Brasil! Eu entrevistei a Anne Mota no ano passado, e ela é um amor de pessoa, e uma ótima atriz! Vão ver o filme!
Em Larte-se (2017; Lygia Barbosa da Silva, Eliane Brum), a quadrinista Laerte conta um pouco da sua trajetória e descoberta da transsexualidade, e como foi esse processo tanto pra ela quanto pra família. De quebra, você aprende um tantão sobre pessoas trans assistindo.
P.S: Os links aqui direcionam para onde você pode ouvir e assistir essas coisas legalmente, beleza? O resto não é por minha conta!
O que achou da edição? Encontrou algum errinho? Comenta aí pra eu saber!!
Eu acredito na Erika Hilton presidenta!
Adorei esse up date sobre o carnaval, ficamos off, só de boinhas🧘🏻♀️🏃🏻♀️
Fico feliz que tenha gostado da minha sugestão ❤️
Também não sou muito de Carnaval — passei o meu lendo rs.
O desfile foi lindo! Pena que não ganhou. O discurso da Erika Hilton antes do desfile foi de arrepiar.
Arrasou, amg! Animada pra próxima edição 🏳️⚧️ ❤️