[#12] Aquele que eu escolho boicotar
O que será que a J.K Rowling e o H.P Lovecraft tem em comum?
Bom dia camaradas, e bem-vindes a mais um Trans do Fim do Mundo, onde filme, jogo e qualquer outro assunto aleatório vira pauta. Se eu quero falar, é aqui que eu vou falar!
Na edição passada a gente conversou sobre Sinners, o novo filme do Ryan Coogler. Geralmente, a indústria sabe que um filme vai bem quando a arrecadação aumenta no 2º final de semana de exibição, e Sinners levou pra casa US$48 milhões na 1ª semana, e US$55 milhões na segunda, isso só nos EUA. Fazer filme bom dá dinheiro, hein?
Essa semana, a gente vai conversar sobre o boicote e os limites dessa prática dentro do capitalismo. E o que a J.K Rowling e o H.P Lovecraft tem a ver com isso, mesmo separados por uns 100 anos de história.

Recentemente, a J.K Rowling, a autora britânica de Harry Potter, postou uma foto no Twitter bebendo um drinque e fumando um cigarro. A legenda da foto é a seguinte: “Eu adoro quando um plano dá certo. #supremacorte #direitodasmulheres”. Ela está se referindo à decisão da Suprema Corte do Reino Unido que definiu, há duas semanas, que o conceito de mulher é definido pelo sexo biológico. Essa decisão, entre outras coisas, pode retirar direitos de mulheres trans, anteriormente reconhecidas como mulheres no país. E a J.K comemora aliviada numa foto. Em 2020, sob o pseudônimo Robert Galbraith, ela também lançou o livro Troubled Blood, que conta a história de um homem cis que se veste de mulher para cometer assassinatos.
Entre 1921 e 1922, o escritor americano H.P Lovecraft escreveu Herbert West-Reanimator, um conto inspirado em Frankenstein [Mary Shelley; 1819], do século anterior. Nele, o autor descreve um personagem negro da seguinte forma: “Era um ser grotesco, com aspecto de gorila, braços anormalmente longos que a mim pareciam pernas dianteiras, e um rosto que evocava pensamentos de inomináveis segredos do Congo e o rufar de tambores sob uma lua fantasmagórica”. Em uma carta para James F. Morton em 1931, Lovecraft critica um antropólogo que à época tentava negar o conceito de raças biológicas. Ele diz: “Ele é o único antropólogo de primeira linha vivo a ignorar a primitividade óbvia do negro e do australoide, daí os utópicos igualitários terem que exaltá-lo ao máximo e esquecer a grande maioria da opinião europeia de destaque”.
Ambos, separados por algumas boas décadas, têm opiniões no mínimo controversas. Essas opiniões, que ofendem e agridem minorias sociais (sejam os negros para Lovecraft ou as mulheres trans para Rowling), podem fazer consumidores repensarem sobre suas leituras e gostos pessoais, o que leva ao boicote, o principal assunto da newsletter de hoje. O boicote nada mais é que a recusa de um consumidor de comprar certo produto - pelo motivo que seja. Seja o Nintendo Switch 2 pelos preços exorbitantes, por exemplo, ou a recusa de consumir qualquer produto Harry Potter que tenha envolvimento da autora. O problema é que se o objetivo do boicote for tirar dinheiro da Nintendo ou da Rowling, infelizmente eu tenho uma notícia pra te dar: não vai adiantar de nada. Mas isso não significa que você deve ignorar o boicote.
Partindo da premissa de que não existe consumo ético no capitalismo, e que todas as nossas compras estão sujeitas a atitudes moralmente questionáveis - da exploração via crunchs na indústria dos videogames, ou o puro e simples trabalho escravo presente na fabricação das linhas fast-fashion, por exemplo - a conclusão lógica é a de que, independente do produto, algum direito foi ferido no processo. No caso específico do modo de produção capitalista puro e simples, direitos trabalhistas, certo? “Então significa que eu tô livre da culpa? Posso consumir o que eu quiser já que inevitavelmente vou estar fazendo mal a alguém?”. É…. não é bem assim que a banda toca.
Harry Potter™ segue fazendo dinheiro: o jogo Hogwarts Legacy, lançado em 2023, vendeu mais de 30 milhões de cópias até outubro de 2024 e, não se engane, deixou a Joanne um pouco mais rica no processo - hoje, ela é a segunda autora mais bem paga no mundo, e tem fortuna estimada em 1 bilhão de dólares. Howard, por outro lado, nunca conseguiu verdadeiramente se sustentar só escrevendo seus contos de horror, e sua literatura foi ganhar reconhecimento mais tarde, só depois da morte dele. Hoje, as obras do Lovecraft estão em domínio público, e não há uma fundação que recolhe os lucros das vendas - como é o caso da Tolkien Estate, por exemplo, para os livros do JRR Tolkien. Na prática, isso significa que os contos do Lovecraft só dão lucro pras editoras que escolhem publicá-los. O Howard Phillips Lovecraft que conhecemos morreu em 1937 e está enterrado no Swan Point Cemetery, em Rhode Island, nos EUA.
No caso da marca Harry Potter™, os direitos estão divididos entre a Joanne, autora dos livros, e a Warner Bros, empresa que comercializa produtos licenciados (desde os livros, filmes, séries, jogos, canecas, cachecóis, parques temáticos… enfim). A compra de qualquer produto licenciado rende uma pequena quantia para cada uma das partes - e como é de se imaginar, já que é uma franquia que movimenta muita grana - muita grana acaba voltando para os bolsos da Rowling. Mas o que a autora faz com esse dinheiro? Segundo o Volant Charitable Trust, o braço filantrópico da autora, ela é responsável por apoiar projetos sociais pela Escócia que foquem em aliviar a privação social sofrida por minorias sociais, como mulheres (cis), crianças e populações economicamente vulneráveis. Outra organização, a Lumos, foca especialmente no acolhimento de crianças órfãs, propondo um novo modelo de orfanato mais humano para crianças ao redor do mundo.
Mas… tem mais. Publicamente, via tweets, a autora admitiu ter doado para organizações que acolhem “apenas mulheres” vítimas de estupro, e que reconhecem, por exemplo, que “fêmeas” são as mais afetadas por abusos sexuais perpetrados majoritariamente por “machos”. Nesses termos biologizantes, mesmo. Ela também doou dinheiro para financiar a defesa de Allison Bailey, membra da Aliança LGB britânica, processada pela Stonewall, uma organização LGBTQ+ escocesa. Lembram da publicação recente “Eu adoro quando um plano dá certo”? Joanne doou 70 mil libras para o movimento escocês transfóbico responsável pela ação que resultou na decisão da Suprema Corte do Reino Unido publicada há duas semanas. Percebam aqui que o meu foco não é revelar as centenas de vezes em que a Rowling foi abertamente transfóbica nas suas redes sociais - porque isso é discurso. O importante aqui são os movimentos que ela apoia e as pessoas que ela escolhe defender.
Agora, voltamos à questão principal do texto, o tal do boicote. Como eu já discorri por aqui, não adianta boicotar a J.K Rowling. Independente das nossas escolhas individuais, ela vai continuar rica, e vai continuar a ter dinheiro para financiar quem ela bem entender - influenciando Congressos e Supremas Cortes no Reino Unido e além mar. A questão, então, alcança uma dimensão moral - de quem nós somos, e quais valores representamos na sociedade em que vivemos. E também sobre quais os valores que queremos representar publicamente.
A Carol Fitzpatrick, jornalista de quem gosto bastante, se dedica imensamente a demonstrar as falhas morais das pessoas que produzem conteúdo sobre Harry Potter na internet - propositalmente sem mencionar ou se importar com os crimes de ódio da autora - divulgando acriticamente a obra. Ao mesmo tempo, influenciadores como a Mikannn ou o Gaveta, em uníssono com uma série de outros criadores de conteúdo - deixaram de cobrir Harry Potter em seus canais do Youtube e redes sociais, demonstrando apoio à comunidade trans, atacada sumariamente pela Rowling. Esses três exemplos que eu dei são de pessoas que - apesar de entenderem que são um pequeno grão de areia dentro da fortuna que gera a marca Harry Potter™ - decidiram divulgar os crimes da autora - e parar de ganhar dinheiro com sua obra mais famosa. Percebem? É um dilema moral - e que, no caso da Mikann e do Gaveta, demonstra apoio prático à comunidade.
Sabe o que também não adianta? Publicamente apoiar pessoas trans enquanto, na surdina, você gera lucro para a Warner Bros - seja comprando livros, assistindo aos filmes, séries, jogando jogos ou fazendo testes por aí pra saber “De qual casa você seria” no mundo de Harry Potter. Engajar ativamente com essa série - sabendo os crimes que a autora comete e o que ela decide fazer com o próprio dinheiro - é moralmente inaceitável. Não importa se não existe consumo ético no capitalismo. Individualmente, ainda somos capazes de empatia, seja para afagar o nosso próprio ego, ou para demonstrar apoio - mesmo que mínimo - a comunidades marginalizadas pelo mundo. Eu consumo H.P Lovecraft sem culpa - não há sequer uma única organização racista recebendo dinheiro e apoiando leis de segregação pelo mundo em seu nome. Mas aquela que não deve ser nomeada, bem, essa… eu escolhi boicotar.
E você?
Recomendações da Semana!
Will & Harper [Josh Greenbaum; 2024] é um documentário em que a gente acompanha o Will Ferrell (ele mesmo) em conversas super bonitas com a sua amiga Harper, que se descobriu trans na terceira idade.
A Cor que Caiu do Espaço [H.P Lovecraft; 1927] é outro conto muito bom do Howard, que explicita bem o seu medo do desconhecido - que deu origem a tantos contos ambíguos e que passeiam entre o racismo e a xenofobia. Leia, é curtinho!
Se você gosta tanto assim de bruxos e magia, eu te recomendo Sosou no Frieren [Kanehito Yamada; 2020-], um anime/mangá sobre uma maga elfa que vive tempo suficiente para perder seus amigos para a velhice - e se arrepende de não ter passado tempo suficiente com eles.
P.S: Esses estão livres de autores que financiam transfobia!
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